Ayrton Montarroyos e João Camarero pulsam afinados em show feito no Rio no compasso de ‘músicas do coração’

Ayrton Montarroyos (de pé) e o violonista João Camarero dividem o palco do clube Manouche, no Rio de Janeiro (RJ) Rodrigo Goffredo ♫ OPINIÃO SOBRE SHOW Título: Ayrton Montarroyos e João Camarero Artistas: Ayrton Montarroyos e João Camarero Data e local: 10 de julho de 2025 no Manouche (Rio de Janeiro, RJ) Cotação: ★ ★ ★ ★ 1/2 ♬ No último título de discografia pautada pelo rigor estilístico, Todo o sentimento (1991), Elizeth Cardoso (1920 – 1990) está unida ao violonista Raphael Rabello (1962 – 1995) em show gravado ao vivo em 1990, no Rio de Janeiro (RJ), e transformado em álbum no ano seguinte. Nesse disco que se tornou póstumo na discografia da cantora, lançado um ano após a morte da artista conhecida pelo epíteto de Divina, Elizeth e Rafael fazem medley que entrelaça, por afinidades poéticas, Janelas abertas (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1958), Canção da manhã feliz (Luiz Reis e Haroldo Barbosa, 1962) e Bom dia (Herivelto Martins e Aldo Cabral, 1942). É sintomático que esse medley tenha reaparecido, luminoso, no show que uniu o cantor Ayrton Montarroyos ao violonista João Camarero em apresentação que lotou o clube Manouche, no Rio de Janeiro (RJ), na noite de quinta-feira, 10 de julho. Grande cantor pernambucano, de 30 anos festejados em 27 de junho, Ayrton é intérprete de alma antiga que professa o mesmo rigor estilístico de Elizeth Cardoso. Excepcional violonista paulista, João Camarero é legítimo discípulo do toque das sete cordas de Raphael Rabello. Por isso, tudo fez sentido no palco do Manouche naquela noite feliz. Ayrton e Camarero pulsaram afinados no compasso das “músicas do nosso coração”, como o cantor sublinhou logo no início da apresentação, aberta com o samba-canção Neste mesmo lugar (Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, 1956), apresentado ao Brasil na voz de Dalva de Oliveira (1917 – 1972) e linkado no roteiro do show com Cobras e lagartos (Sueli Costa e Hermínio Bello de Carvalho, 1975). Foi na atmosfera dramática e magoada do samba-canção (e de gêneros afins) que o cantor e o violinista ambientaram o show em que o canto de tragédias afetivas teve o ápice com a lembrança de Formicida, corda e flor (1979), música cuja letra é espécie de “carta de suicídio”, como bem caracterizou Ayrton ao apresentar a composição gravada somente por Nana Caymmi (1941 – 2025) e por Rosa Passos. Rosa é parceira do letrista Fernando de Oliveira na criação da música, cantada no show com citação instrumental ao violão de Sem você (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1959), dilacerada canção apresentada pelo duo no número anterior. A propósito, as falas espirituosas de Aryton Montarroyos deram leveza ao show e ao público, mas por vezes também quebraram a fluência do roteiro quando se estenderam demais. Em alguns momentos, a leveza também veio da cadência de sambas como Formosa (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1965) e Risoleta (Raul Marques e Moacir Bernardino, 1937), este turbinado originalmente com os breques de Luís Barbosa (1910 – 1938), cantor que se tornou referência no samba sincopado antes de falecer precocemente, aos breves 28 anos, vítima de pneumonia. Conhecedor da história da música brasileira, Ayrton reverenciou em cena Luís Barbosa, cantor pouco lembrado pela imprensa musical. O toque preciso do violão de João Camarero se harmoniza com o canto rigoroso de Ayrton Montarroyos Rodrigo Goffredo Se o canto de Ayrton Montarroyos soou sempre preciso, o toque do violão de João Camarero ostentou o mesmo esmero, seja quando caiu no suingue do samba, seja quando armou a cama para o cantor dar voz às profundas dores de amores recorrentes no repertório. Sem jogar nota fora e tampouco sem se render ao exibicionismo, Camarero se confirmou gigante no manuseio do violão. Quando cantor e violonista se afinaram na lembrança do Bolero de Satã (Guinga e Paulo César Pinheiro, 1976), o público testemunhou mais um momento de perfeição e ainda ganhou como brinde a graciosa imitação de Cauby Peixoto (1931 – 2016) no canto do bolero, feita por Ayrton. Cauby, cabe lembrar, foi o intérprete convidado de Elis Regina (1945 – 1982) na gravação mais famosa do Bolero de Satã, feita pela cantora no álbum Elis, essa mulher (1979), três anos depois do obscuro registro fonográfico original da composição, lançada por José Milton quando o produtor musical tentou a sorte como cantor em disco de 1976. A sintonia entre Ayrton Montarroyos e João Camarero vem sendo exercitada desde 2020, ano em que, confinados em casa pelo isolamento social imposto pela pandemia de covid-19, o cantor e o violonista fizeram série de lives transformadas em discos. Desse período, o duo reviveu o samba-canção Ela disse-me assim (Vai embora) (1959), pérola do cancioneiro amargurado do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974). Música improvisada no bis, como afago no público carioca pelo fato de o bolero ter na visão de Ayrton uma “vibe de Rio”, Anos dourados (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1986) foi a música m

Jul 12, 2025 - 12:00
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Ayrton Montarroyos e João Camarero pulsam afinados em show feito no Rio no compasso de ‘músicas do coração’

Ayrton Montarroyos (de pé) e o violonista João Camarero dividem o palco do clube Manouche, no Rio de Janeiro (RJ) Rodrigo Goffredo ♫ OPINIÃO SOBRE SHOW Título: Ayrton Montarroyos e João Camarero Artistas: Ayrton Montarroyos e João Camarero Data e local: 10 de julho de 2025 no Manouche (Rio de Janeiro, RJ) Cotação: ★ ★ ★ ★ 1/2 ♬ No último título de discografia pautada pelo rigor estilístico, Todo o sentimento (1991), Elizeth Cardoso (1920 – 1990) está unida ao violonista Raphael Rabello (1962 – 1995) em show gravado ao vivo em 1990, no Rio de Janeiro (RJ), e transformado em álbum no ano seguinte. Nesse disco que se tornou póstumo na discografia da cantora, lançado um ano após a morte da artista conhecida pelo epíteto de Divina, Elizeth e Rafael fazem medley que entrelaça, por afinidades poéticas, Janelas abertas (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1958), Canção da manhã feliz (Luiz Reis e Haroldo Barbosa, 1962) e Bom dia (Herivelto Martins e Aldo Cabral, 1942). É sintomático que esse medley tenha reaparecido, luminoso, no show que uniu o cantor Ayrton Montarroyos ao violonista João Camarero em apresentação que lotou o clube Manouche, no Rio de Janeiro (RJ), na noite de quinta-feira, 10 de julho. Grande cantor pernambucano, de 30 anos festejados em 27 de junho, Ayrton é intérprete de alma antiga que professa o mesmo rigor estilístico de Elizeth Cardoso. Excepcional violonista paulista, João Camarero é legítimo discípulo do toque das sete cordas de Raphael Rabello. Por isso, tudo fez sentido no palco do Manouche naquela noite feliz. Ayrton e Camarero pulsaram afinados no compasso das “músicas do nosso coração”, como o cantor sublinhou logo no início da apresentação, aberta com o samba-canção Neste mesmo lugar (Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, 1956), apresentado ao Brasil na voz de Dalva de Oliveira (1917 – 1972) e linkado no roteiro do show com Cobras e lagartos (Sueli Costa e Hermínio Bello de Carvalho, 1975). Foi na atmosfera dramática e magoada do samba-canção (e de gêneros afins) que o cantor e o violinista ambientaram o show em que o canto de tragédias afetivas teve o ápice com a lembrança de Formicida, corda e flor (1979), música cuja letra é espécie de “carta de suicídio”, como bem caracterizou Ayrton ao apresentar a composição gravada somente por Nana Caymmi (1941 – 2025) e por Rosa Passos. Rosa é parceira do letrista Fernando de Oliveira na criação da música, cantada no show com citação instrumental ao violão de Sem você (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1959), dilacerada canção apresentada pelo duo no número anterior. A propósito, as falas espirituosas de Aryton Montarroyos deram leveza ao show e ao público, mas por vezes também quebraram a fluência do roteiro quando se estenderam demais. Em alguns momentos, a leveza também veio da cadência de sambas como Formosa (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1965) e Risoleta (Raul Marques e Moacir Bernardino, 1937), este turbinado originalmente com os breques de Luís Barbosa (1910 – 1938), cantor que se tornou referência no samba sincopado antes de falecer precocemente, aos breves 28 anos, vítima de pneumonia. Conhecedor da história da música brasileira, Ayrton reverenciou em cena Luís Barbosa, cantor pouco lembrado pela imprensa musical. O toque preciso do violão de João Camarero se harmoniza com o canto rigoroso de Ayrton Montarroyos Rodrigo Goffredo Se o canto de Ayrton Montarroyos soou sempre preciso, o toque do violão de João Camarero ostentou o mesmo esmero, seja quando caiu no suingue do samba, seja quando armou a cama para o cantor dar voz às profundas dores de amores recorrentes no repertório. Sem jogar nota fora e tampouco sem se render ao exibicionismo, Camarero se confirmou gigante no manuseio do violão. Quando cantor e violonista se afinaram na lembrança do Bolero de Satã (Guinga e Paulo César Pinheiro, 1976), o público testemunhou mais um momento de perfeição e ainda ganhou como brinde a graciosa imitação de Cauby Peixoto (1931 – 2016) no canto do bolero, feita por Ayrton. Cauby, cabe lembrar, foi o intérprete convidado de Elis Regina (1945 – 1982) na gravação mais famosa do Bolero de Satã, feita pela cantora no álbum Elis, essa mulher (1979), três anos depois do obscuro registro fonográfico original da composição, lançada por José Milton quando o produtor musical tentou a sorte como cantor em disco de 1976. A sintonia entre Ayrton Montarroyos e João Camarero vem sendo exercitada desde 2020, ano em que, confinados em casa pelo isolamento social imposto pela pandemia de covid-19, o cantor e o violonista fizeram série de lives transformadas em discos. Desse período, o duo reviveu o samba-canção Ela disse-me assim (Vai embora) (1959), pérola do cancioneiro amargurado do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974). Música improvisada no bis, como afago no público carioca pelo fato de o bolero ter na visão de Ayrton uma “vibe de Rio”, Anos dourados (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1986) foi a música mais recente de roteiro situado majoritariamente no Brasil pré-bossa nova. A alma antiga de Ayrton Montarroyos lhe deu legitimidade para entremear o canto do samba-canção Pela décima vez (Noel Rosa, 1947) com o samba Camisa amarela (1939), pretexto para Ayrton revelar que o cantor e o violonista preparam show com o cancioneiro do compositor mineiro Ary Barroso (1903 – 1964). Na aquarela desse Brasil brasileiro do duo, coube também os tons secos do sertão nordestino, evocado com impactante número que linkou Antonio das Mortes (Sérgio Ricardo e Glauber Rocha, 1964) com Guriatã de coqueiro (Severino Rangel, 1930) com Ayrton modulando a voz como um cantador das feiras do nordeste e Camarero tirando sons mouros do toque árido do violão evocativo da riqueza musical da nação nordestina. Contudo, foi basicamente no compasso do desamor de sambas-canção que o canto de Ayrton Montarroyos e o violão de João Camarero pulsaram afinados, em total harmonia. em show feito com o coração e com o rigor de Elizeth Cardoso e Raphael Rabello.