'O que aprendi ao viver um ano sozinho com um gato em uma ilha remota'
Bob Kull sentado em uma cadeira, com seu gato no colo, na Patagônia chilena Bob Kull/via BBC O frio e a umidade eram extremos. Perto da cabana de madeira compensada e lonas de plástico, só havia quilômetros e quilômetros de árvores, rochas, alguns animais e o mar. Nem uma única pessoa, muito menos um hospital ou clínica dentária. Mas Bob Kull precisava extrair um dente, devido a um doloroso abscesso. Ele pensou em ligar para o exército com o telefone via satélite que havia levado consigo. Mas a ajuda não chegaria com rapidez e teria significado o fim da sua missão: viver um ano sozinho na Patagônia chilena. Ele decidiu enviar um e-mail para seu contato de emergência, sua amiga Patty, que casualmente é enfermeira. A resposta foi taxativa: "Ela me disse para amarrar uma corda no meu dente e, no outro lado, a uma porta, fechá-la com força e seguir com a vida", relembra Kull. "E acrescentou que 'as pessoas arrancaram seus próprios dentes sozinhas por séculos. Resolva.'" Patty estava preocupada, mas sua mensagem tentava motivar Kull a prosseguir com sua viagem. A cabana não tinha uma porta pesada que ele pudesse usar. Por isso, ele tentou fazer o mesmo, mas amarrando o fio a uma rocha. Mas o medo da dor não permitiu que ele a atirasse. "O que fiz foi amarrar a ponta da corda à perna da mesa, pregada no chão, e simplesmente arranquei o dente com os músculos do pescoço", contou ele. "Me doeu muito mais pensar do que fazer." Kull levou um caiaque, um bote inflável e muitas ferramentas de construção, incluindo madeira, martelos e uma motosserra Bob Kull/via BBC O ano era 2001. E o norte-americano cursava doutorado na Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá. Como parte da sua tese, Kull viajou até um remoto arquipélago no Chile para pesquisar como seria viver em isolamento em meio ao clima extremo. Sua estadia solitária foi repleta de metáforas, como a do dente doente. É claro que ele não incentiva as pessoas a realizar procedimentos médicos por conta própria. Mas, para ele, a situação mostrou como, muitas vezes, ignoramos nosso potencial. "Quando essas coisas acontecem, uma parte de você sempre pensa: 'Preciso estar perto de um dentista ou de outras pessoas'", destaca ele. Kull afirma que muitas pessoas receiam a solidão "porque um dos desafios da solidão é que ela nos obriga a enfrentar o que ignoramos". Mas, para ele, este foi um processo de aprendizado, que ele contou ao programa de rádio Outlook, do Serviço Mundial da BBC. Um menino que procura seu espaço Kull tem atualmente 79 anos de idade. Ele cresceu na pobreza, em uma zona rural do sul da Califórnia, nos Estados Unidos. Sua cama ficava em um corredor da casa, de forma que ele não tinha privacidade. Ele não descreve maus tratos, mas afirma que seus pais o julgavam constantemente. Somente o amor pela natureza unia sua família. "No verão, fazíamos piquenique todos os domingos à tarde. Era o que nos mantinha unidos", ele conta. E dali também nasceu seu interesse e a busca constante da solidão. "De certa forma, minha infância foi idílica, mas eu absolutamente não entendia isso. Sentia apenas que havia algo errado em mim." "Por isso, cruzar a estrada, pular a cerca de arame farpado e desaparecer em um bosque, nos pastos e em um riacho, simplesmente para ficar sozinho, era uma grande bênção para mim", relembra Kull. "Era o único lugar onde podia relaxar e ser quem realmente sou. Acredito que foi ali que começou este amor por ficar sozinho no mundo não humano." Depois de adulto, Kull saiu de casa assim que pôde. Ele viajou pelos Estados Unidos e se mudou para o Canadá, para evitar ser recrutado para a Guerra do Vietnã (1959-1975, com participação dos Estados Unidos a partir de 1965). Ali, ele teve inúmeros trabalhos — no corpo de bombeiros, em uma serraria, em manutenção e na construção civil. Kull chegou a fazer um curso de fotografia de dois anos. E também viveu uma crise existencial. "Eu me havia transformado em um homem machista, que se embriagava nos bares e estragava tudo o que tocava", segundo ele. "Eu sentia um vazio, minha vida estava simplesmente vazia. Eu precisava passar tempo comigo mesmo." Kull decidiu, então, passar seu primeiro período longo em solidão, em meio à natureza no norte do Canadá. Por três meses, ele pescou e caçou em um bosque na província da Colúmbia Britânica. E, em um desses dias, perto de uma praia, ele viu pegadas de urso. Sua aventura passou a ser uma experiência apavorante. Ele precisava decidir entre enfrentar seu medo ou retornar à vida em sociedade. E optou pela primeira opção. "Uma noite, deixei a fogueira para trás, caminhei até o bosque e me deitei no solo, em meio à escuridão", ele conta. "Fiquei ali por algum tempo e ouvi um urso vir na minha direção. Eu me assustei, cheguei à beira do pânico." Kull se manteve imóvel. Afinal, ante a presença de um animal selvagem, qualquer passo em falso poderia ter significado a sua morte. Sem nenhum propósito, já que não tinha ninguém por perto, ele começou a pedir ajuda, até


Bob Kull sentado em uma cadeira, com seu gato no colo, na Patagônia chilena Bob Kull/via BBC O frio e a umidade eram extremos. Perto da cabana de madeira compensada e lonas de plástico, só havia quilômetros e quilômetros de árvores, rochas, alguns animais e o mar. Nem uma única pessoa, muito menos um hospital ou clínica dentária. Mas Bob Kull precisava extrair um dente, devido a um doloroso abscesso. Ele pensou em ligar para o exército com o telefone via satélite que havia levado consigo. Mas a ajuda não chegaria com rapidez e teria significado o fim da sua missão: viver um ano sozinho na Patagônia chilena. Ele decidiu enviar um e-mail para seu contato de emergência, sua amiga Patty, que casualmente é enfermeira. A resposta foi taxativa: "Ela me disse para amarrar uma corda no meu dente e, no outro lado, a uma porta, fechá-la com força e seguir com a vida", relembra Kull. "E acrescentou que 'as pessoas arrancaram seus próprios dentes sozinhas por séculos. Resolva.'" Patty estava preocupada, mas sua mensagem tentava motivar Kull a prosseguir com sua viagem. A cabana não tinha uma porta pesada que ele pudesse usar. Por isso, ele tentou fazer o mesmo, mas amarrando o fio a uma rocha. Mas o medo da dor não permitiu que ele a atirasse. "O que fiz foi amarrar a ponta da corda à perna da mesa, pregada no chão, e simplesmente arranquei o dente com os músculos do pescoço", contou ele. "Me doeu muito mais pensar do que fazer." Kull levou um caiaque, um bote inflável e muitas ferramentas de construção, incluindo madeira, martelos e uma motosserra Bob Kull/via BBC O ano era 2001. E o norte-americano cursava doutorado na Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá. Como parte da sua tese, Kull viajou até um remoto arquipélago no Chile para pesquisar como seria viver em isolamento em meio ao clima extremo. Sua estadia solitária foi repleta de metáforas, como a do dente doente. É claro que ele não incentiva as pessoas a realizar procedimentos médicos por conta própria. Mas, para ele, a situação mostrou como, muitas vezes, ignoramos nosso potencial. "Quando essas coisas acontecem, uma parte de você sempre pensa: 'Preciso estar perto de um dentista ou de outras pessoas'", destaca ele. Kull afirma que muitas pessoas receiam a solidão "porque um dos desafios da solidão é que ela nos obriga a enfrentar o que ignoramos". Mas, para ele, este foi um processo de aprendizado, que ele contou ao programa de rádio Outlook, do Serviço Mundial da BBC. Um menino que procura seu espaço Kull tem atualmente 79 anos de idade. Ele cresceu na pobreza, em uma zona rural do sul da Califórnia, nos Estados Unidos. Sua cama ficava em um corredor da casa, de forma que ele não tinha privacidade. Ele não descreve maus tratos, mas afirma que seus pais o julgavam constantemente. Somente o amor pela natureza unia sua família. "No verão, fazíamos piquenique todos os domingos à tarde. Era o que nos mantinha unidos", ele conta. E dali também nasceu seu interesse e a busca constante da solidão. "De certa forma, minha infância foi idílica, mas eu absolutamente não entendia isso. Sentia apenas que havia algo errado em mim." "Por isso, cruzar a estrada, pular a cerca de arame farpado e desaparecer em um bosque, nos pastos e em um riacho, simplesmente para ficar sozinho, era uma grande bênção para mim", relembra Kull. "Era o único lugar onde podia relaxar e ser quem realmente sou. Acredito que foi ali que começou este amor por ficar sozinho no mundo não humano." Depois de adulto, Kull saiu de casa assim que pôde. Ele viajou pelos Estados Unidos e se mudou para o Canadá, para evitar ser recrutado para a Guerra do Vietnã (1959-1975, com participação dos Estados Unidos a partir de 1965). Ali, ele teve inúmeros trabalhos — no corpo de bombeiros, em uma serraria, em manutenção e na construção civil. Kull chegou a fazer um curso de fotografia de dois anos. E também viveu uma crise existencial. "Eu me havia transformado em um homem machista, que se embriagava nos bares e estragava tudo o que tocava", segundo ele. "Eu sentia um vazio, minha vida estava simplesmente vazia. Eu precisava passar tempo comigo mesmo." Kull decidiu, então, passar seu primeiro período longo em solidão, em meio à natureza no norte do Canadá. Por três meses, ele pescou e caçou em um bosque na província da Colúmbia Britânica. E, em um desses dias, perto de uma praia, ele viu pegadas de urso. Sua aventura passou a ser uma experiência apavorante. Ele precisava decidir entre enfrentar seu medo ou retornar à vida em sociedade. E optou pela primeira opção. "Uma noite, deixei a fogueira para trás, caminhei até o bosque e me deitei no solo, em meio à escuridão", ele conta. "Fiquei ali por algum tempo e ouvi um urso vir na minha direção. Eu me assustei, cheguei à beira do pânico." Kull se manteve imóvel. Afinal, ante a presença de um animal selvagem, qualquer passo em falso poderia ter significado a sua morte. Sem nenhum propósito, já que não tinha ninguém por perto, ele começou a pedir ajuda, até que se rendeu. "Se um urso precisar me comer, que assim seja", pensou ele. O urso nunca chegou perto e, até hoje, ele não sabe se era real. Esta experiência marcou profundamente a sua vida. Ele entendeu que havia atingido algo essencial: a rendição espiritual que o conectou a algo maior que ele. "Eu tinha a fantasia de que assim seria minha vida, repleta de luz e assombro", explica ele. "Era o que eu vinha buscando: uma sensação de presença espiritual." Estudar a si próprio Última Esperança é um arquipélago inóspito na Patagônia chilena Bob Kull/via BBC Depois desta experiência na natureza, Kull continuou viajando e chegou a oferecer um curso de vela e mergulho na República Dominicana. Posteriormente, ele foi atropelado por um motorista embriagado. Kull passou um ano no hospital em Montreal, no Canadá, e teve uma perna amputada. Esta dolorosa vivência o levou a estudar biologia, meio ambiente e psicologia na Universidade McGill, no Canadá, com 40 anos de idade. E, quando chegou ao doutorado, seus interesses deram uma reviravolta. Em vez de estudar o mundo que o rodeava, ele começou a analisar a si mesmo. "Percebi que o animal que eu realmente queria estudar era eu próprio", destaca ele. Surgiu, então, a ideia de ir até Última Esperança, um arquipélago no sul do Chile, longe não só dos turistas, mas das pessoas em geral. Como alertou o governo chileno, um lugar "feroz e extremo". "Eu disse aos chilenos que conhecia o frio, pois havia morado no oeste de Vancouver, no Canadá", relembra Kull. "Mas eu realmente não tinha ideia do que é o clima frio. Aquele lugar no Chile é onde mais venta na Terra." Ele se estabeleceu em uma pequena ilha que nem mesmo tinha nome. Não havia nenhuma pessoa a dezenas de quilômetros de distância. A marinha chilena ajudou Kull a chegar ao arquipélago com todo o seu equipamento. Ele levou consigo uma longa lista de materiais: comida, ferramentas de construção, uma vara de pesca, um caiaque e um bote inflável, propano, estufa e equipamentos de comunicação. E levou também um gato, que o ajudaria a identificar se seus peixes ainda estavam frescos. Mas ele se transformou em um mimado acompanhante de Kull, para quem ele viria a capturar mariscos e cuidar das condições inclementes do sul do planeta. Os primeiros meses foram insuportáveis. Ele dormia em uma tenda de campanha. Certa noite, ela ficou inundada pela maré. Isso o obrigou a remover todas as suas coisas e construir posteriormente, com as próprias mãos, uma cabana elevada sobre postes para evitar o solo úmido. "Meu plano era grampear as lonas", explica ele. "Levei 2 mil grampos, mas eram do tamanho errado. Precisei pregá-las uma por uma com um martelo." "Meus dedos estavam rachados pelo frio. Eu não parava de me martelar e praguejar." No seu lar improvisado, Kull conseguiu enfrentar um pouco melhor a dura vida na Patagônia. Dentro daquelas paredes de lona, ele só não conseguiu escapar de si próprio. O que a solidão nos ensina? O vento forte e a umidade danificavam a casinha de madeira e lona. Por isso, Kull passava os dias ocupado com reparos. "Eu simplesmente vivia um dia após o outro, mas fiquei bastante ocupado, pois sempre precisava fazer reparos", relembra ele. "E, além disso, também precisava ir pescar, buscar lenha com a motosserra e cortar a madeira para o fogo." Kull também manteve sua prática de meditação em horários estabelecidos. "Os domingos eram meus dias de descanso. Naquele dia da semana, eu não fazia nada estruturado, nem mesmo meditar ou afazeres, só ficava ali." E aquele dia da semana era exatamente "o mais difícil". Kull pensava que, durante seu ano na Patagônia, ele se sentiria como nos três meses que passou no bosque canadense, "entrelaçado" com o mundo. De fato, havia momentos como aquele. Mas, depois, principalmente aos domingos, ele caía "em profunda depressão, ira, sensação de solidão e alienação", segundo Kull. Mas a solidão o ajudou a descobrir seu potencial, como aconteceu ao arrancar o dente, e a se entregar ao momento, no bosque do Canadá. E também ofereceu um terceiro grande ensinamento: a aceitação. "Acredito que a lição mais importante que aprendi foi a equanimidade", descreve ele. "Aceitar as coisas como elas são." Esta ideia veio a ele quando visitava um glaciar que havia observado nos seus mapas da Patagônia. Kull ficou ainda mais isolado, longe da sua pequena cabana e do gato que lhe fazia companhia. "Da mesma forma que não consigo controlar o clima exterior, mas posso aprender a viver com ele e não me sentir tão mal quando faz frio ou chove, posso fazer o mesmo com o clima interior." "Às vezes, dentro [de nós] faz sol e calor", ele conta, "às vezes há névoa e, às vezes, há tormenta." "Parece bobagem, não é verdade? A afirmação de que as coisas são como são é algo tão básico. Mesmo assim, dedicamos muito tempo e energia a negar a realidade, a negar que as coisas sejam assim. Ou a lutar contra a realidade." Kull passou pouco mais de um ano na Patagônia, até que sua amiga Patty chegou com a marinha chilena para buscá-lo. Ele afirma que já estava acostumado com a solidão e não tinha pressa para finalizar sua aventura. "Quando o barco da marinha veio me buscar, Patty estava comigo, mas fui até a popa e simplesmente me sentei e observei como a ilha desaparecia à distância", recorda ele. Kull comenta que Última Esperança havia se transformado em um "lar" para ele. Atualmente, ele mora em Vancouver, no Canadá, e ainda tem momentos de total solidão. "Ainda passo um mês acampando sozinho", ele conta. "Dirijo até o norte e, dali, pago a um piloto para me levar a um lago remoto com seu hidroavião e me deixar ali." Onde fica esse lago? Kull se nega a dizer. Ele não quer que ninguém interrompa sua solidão.